domingo, 20 de junho de 2010

VIII

No outro dia, numa daquelas manhãs húmidas de Sintra, houve um velho de outro tempo que passou pela rua. Vinha de preto, casaca comprida e comida pelo atrito dos anos. O atrito dos anos é uma expressão optimista, agora bastam segundos para que uma casaca se perca para sempre numa história que já não existe. Tinha o rosto enrugado e amarelo torrado, coberto por uma penugem russa que lhe cobria quase toda a cara, e à volta do olho um vinco profundo e redondo, como se tivesse passado toda a vida a espreitar por um monóculo, no entanto hei-lo agora a passar pela rua ainda meio nublada da manhã.
O gatilho quando tocado ao de leve, como que a sondar a pressão exacta do disparo, resiste, e a arma parece fundir-se numa só peça pesada e inteira. O gatilho, quando finalmente premido não oferece resistência, e a arma desvanece-se na bala que desaparece não se sabe bem onde; procura-la é procurar por um culpado quando a culpa já se encontra eliminada.
Mais uma vez, como deste sempre, a terra foi invadida pelo cheiro a queimado das lareiras dos homens. O velho seguiu caminho até à praça da igreja, parou de fronte para o templo e cheirou um pouco de rapé que retirou de uma minúscula caixa de marfim que tinha no bolso da casaca, passada essa oração seguiu caminho e desapareceu na neblina matinal. Aquela neblina que agora é só água gasosa que percorre as ruas e não trás mais do que verdete às paredes.