quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

XVIII

      Alguém que caminhando pela rua pára. Alguém que prostrando-se desconhece a arte de se prostrar. Alguém num dia de Verão encosta a cabeça à terra e desaparece entre raízes e grãos de areia.
      À frente um monte. Um monte que se desdobra em erupções do granito. Granito que se eleva pelo meio das silvas e dos medronheiros. As silvas e os medronheiros que se multiplicam e explodem em flor. Um carvalho meio tombado mais adiante sobre o sopé enegrecido pela luz oblíqua da manhã. Ao longe o grito de um melro que corta todo negro por entre a folhagem. O melro lá desde a aurora. A ribeira lenta e melódica que desagua lá em baixo numa torrente insuperável e lamacenta de tudo o que há de ser. Para trás não há caminho, azinheiras de cada vez mais fechadas e tudo o que se vê é vivo. Para tras tudo grita. Sentamo-nos na sombra de um marmeleiro, experimentamos o fruto. Lá bem no ar um açor paira sob o sol. Aqui faremos Lisboa.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

XVII

     Come sim, come não, há mesmo quem coma dia sim dia não. Não tu. A ti é-te dado a escolher entre a guloseima e a fome. Tu comes todos os dias guloseimas, gomas das mais variadas cores e feitios, mas sempre doces. Falta-te o bife, e é por ele que padecerás. É uma porra, és como toda a gente, sempre a merda do bife. Bife de vaca, de porco de cavalo, e nunca nenhum te passou pelas beiças, nem mesmo o sem sabor do peru.

     Entre ti e a linha do comboio, quando estás mesmo à borda do cais, pronto para saltar, há uma infinita distância.

     É quase manhã e os primeiros melros já cantam por entre voos rasantes, quase contra a janela, quase estatelados no tronco que parecia estar ali. Nesse caminho é certo que o arrependimento chegará, é o instante imediatamente anterior ao embate do corpo contra a linha.

     Sentas-te à janela, mastigas infrutiferamente uma goma do dia anterior, pensas em recolher todas as gomas do mundo numa bola de açúcar gigante, no entanto isso não é fácil. Continuas a mastigar.

     Só há uma coisa a fazer, atiras-te cantando. Na impossibilidade do bife, cantas sem respirar entre as palavras, sem ritmo seja perceptível mesmo para ti, e no final de cada nota apenas a seguinte sem qualquer distinção. Resta então apenas escolher a música. Ou o grito.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

XVI

E o branco que é branco, o preto que é preto e as listas telefónicas que não se distribuem sozinhas. A palavra que não é certa e o momento que não é oportuno e o carro que não pega a mota que não anda e o passarinho que já não canta e o dia que não chega. E o mundo que diz que gira e o rato que vai roendo, devagarinho, e o espaço que mesmo assim não existe e o tempo que por isso vai existindo, o elástico que não estica mais mais coisas e todas as coisas que há na dispensa, a dispensa que é escura e cada vez menos atulhada cada vez mais cheia que se arruma e não se deixa de o fazer aqui a despensa cada vez mais cheia e a outra cada vez mais vazia sempre assim sempre dentro do arco o arco do triunfo e não há jogo de cintura que aguente o arco no sítio e tudo se vai passando assim como pela segunda vez. Ver revendo. O dia que já não é dia porque foi adiado para depois, para depois de amanhã o galo que canta ao dia o cão que ladra ao dia e o dia nem vê-lo. Esta noite o rato acaba de roer a corda que segura as cuecas penduradas que se soltam do estendal que nos caem na cara no preciso momento em que nós sempre nós olhamos em profundíssimos sonhos poéticos o céu da noite escura. Há coisas em que não se toca dizemos nós ao rato que responde que as cuecas é que sabem disso. Guardamos o presente dos céus dobradinhas com cuidado por cima da cómoda. Lá fora há uma ponta de cigarro que inflama e desflama no escuro por trás dos caixotes do lixo. C’est la gare

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

XV

A pulga, insiste em intrometer-se no nosso caminho. A forma como morde sem ser notada e desaparece nos lençóis - que por ela já não são - brancos e deixa para trás um rasto de sangue indicando a sua presença - e a nossa - tem algo de secreto e insano. Se acendemos a luz esta obrigamos a fechar os olhos habituados à escuridão; a pulga é uma relação obscura na inconsciência do sono, a borbulha que teima em pedir que a cocem é a memória que não temos desse sono.
Mudamos de lençóis e a pulga teima em permanecer. Tomamos banho, muitos banhos, e a pulga teima em permanecer. Alguém nos diz que é da alcatifa; livramo-nos dela e a pulga teima em permanecer. Pouco a pouco vamo-nos despojando das coisas que possam servir de eventual habitat para a pulga, no fim já pouco resta (é inacreditável aquilo sem o qual a vida é possível) mas a pulga essa teima em permanecer.
Estamos certos de que haverá certamente casos em que pobres inocentes como nós bateram com os costados em casas pouco recomendáveis devido à sua fixação com a pulga, conhecemos pelo menos um, um rapaz que pelos seus quinze anos foi atormentado por uma, e de tal forma se fixou nela (ou na sua ausência) que hoje já com dezoito passa os dia sentado numa marquise todo nu, a fazer os gestos de quem se cata; matando as pulgas imaginárias com os seus dois polegares oponentes, a marca da evolução da espécie.
Finalmente a pulga à nossa frente enquanto fazemos a cama. Uma seca cacetada de jornal e é o fim, ou julgamos que é o fim. A pulga, parece-nos, vence sempre.

domingo, 17 de outubro de 2010

XIV

Senhor. Diga-me, há quantos anos está nessa cadeira?
Meu caro, nesta altura não lhe sei dizer, mas penso, e quase lhe posso jurar, que já aqui estou há algum tempo. Mas se me permite a chamada de atenção, repare que não se trata de uma cadeira qualquer, veja como as fibras da madeira se moldaram cuidadosamente ao meu corpo, como o tempo me proporcionou este lugar privilegiado e confortável.
Não vejo qualquer razão para sair daqui, estou numa posição excepcional de costas para a janela, o que me permite ler confortavelmente o jornal que o rapazito me tráz todos os dias. Para alem do mais se me levantasse estaria com certeza sujeito a partir uma perna na primeira irregularidade da carpete. De todo o modo penso já não ter forças para me levantar. Em tempos andei por aí, mas depois desisti, o cansaço torno-se insuportável. A minha paciência esgotou-se e sentei-me.
As necessidades faço-as mesmo aqui, sem que isso me cause o mínimo transtorno, na verdade é isso que me mantém quente. Tenho ainda um criado que me traz a aguardente da qual me alimento desde que me sentei.
Nunca casou?
Sim, claro, em tempos... ou melhor, estive noivo, mas nunca cheguei a consumar nada. Nessa altura já me encontrava por aqui o que não me deixou ir ao cartório. Foi um desgosto muito grande para a menina, muito sal se colou àquela cara nesse tempo. Acabou nessa altura por ficar comigo mesmo assim. O problema era o cheiro dizia, tentava em vão limpar-me e fazer-me andar um pouco. Até que uma tarde desistiu. Subiu lentamente até aqui ao quarto dirigiu-se à janela atrás de mim e atirou-se. Não vi nada, apenas senti a sua sombra aparecer e desaparecer e o som seco do corpo a esborrachar-se lá em baixo.
Eu nunca tinha gostado tanto de ninguém, na verdade foi a única mulher que conheci. Como lá fora não passa ninguém, a não ser a muitos quilómetros, ou rapidamente para ir a algum lado nunca ninguém recuperou o corpo, nunca ninguém quis saber. O cheiro de tempos a tempos ainda sobe pela fachada e entra pelo quarto dentro. E eu não consigo escapar-lhe, ao cheiro... ao cheiro que constantemente reaparece.
E agora?
Nada. Mas porquê tanta pergunta? Isso não é nada saudável, em vez de fazer perguntas feche os olhos e siga em frente, vá ao casino. Nunca percebi as pessoas que dizem que não vão ao casino porque não sabem jogar, esquecem-se do princípio fundamental destas coisas. Rapaz, vá e atire os dados! Sinta prazer ao faze-lo, contemple o infinito enquanto eles não param de rodar
Agora o quê? Veja como os sulcos que os meus braços abrem nos braços da cadeira estão cada vez mais fundos, em breve estarei completamente afundado na cadeira e ela fechar-se-á sobre mim. E nesse dia sim, pela primeira vez, apenas o leve cheiro da madeira. 

domingo, 19 de setembro de 2010

XIII

     No templo ao Sábado de manhã celebra-se um casamento. Através da gente que cochicha, ajoelhados junto ao altar, estão aqueles a casar. O diácono, de olhar sério e costas meio curvas (devido certamente ao peso de toda aquela magnanimidade de pedra trabalhada e de frescos que fazem do templo a casa de Deus). E o templo, pedra sobre pedra até uma altura incompreensível que obriga o olhar a perder-se em devaneios e os olhos a uma certa comoção beata.
   Há qualquer coisa de incompreensível nos murmúrios do diácono que se contorce e soa da testa enquanto tenta explicar aquilo para o qual no fundo não parece haver explicação. E os olhos dos convidados que se vão perdendo por entre a folha de ouro e os berloques dos santinhos.
   Os noivos, muito sérios e muito crentes, e a mãezinha que vai chorando e o diácono que lá se vai esforçando por encher o vazio do imenso templo com a palavra:  quam ob rem relinquet homo patrem suum et matrem et adherebit uxori suae et erunt duo in carne una. E a carne que fervilha verdadeiramente, agora apenas para sair dali.
   Ao fundo, ouve-se bater a grande porta, uns passos, uma voz que se eleva e grita:
   -O Rei vai nú!
   O Diácono que quase deixa cair o livro santo, a mãezinha que desmaia, e os santos em pau que começam a corar. E a boa alma que não para...
   -Porcos! Que apenas conseguis cheirar a própria merda e jamais a do outro, porque a do outro cheira verdadeiramente mal e é insuportável! Quereis agora unir essas carnes que nunca se suportarão? Não percebem que isso não vele nem para bife? E que dentro destas quatro paredes há um Rei que se passeia nú?
   O noivo levanta-se zangado, a noiva (que não chora por causa da maquilhagem) levanta o vestido até acima dos joelhos para poder correr melhor. Rapidamente todas as carnes ali presentes se unem à carne do infeliz blasfemo que vai sentido a sua carne moer e depois começar lentamente a escorrer pelas lages da igreja, até que finalmente, a luz lhe some dos olhos e deixa de sentir. 
   Felizes os convivas, depois de provado que a carne se funde com a carne, com o cajado do S. João Baptista que estava no altar, e que, com um pouco de esforço por parte do diácono, se funde até com o livro de orações, a cerimónia continua alegremente.

domingo, 12 de setembro de 2010

XII

O quê? Já acabou? Tão cedo?! Procuraste no sótão? Desceste à cave? Não há mesmo mais nada? Tão cedo? Acredito. Estava-se mesmo a ver... mais cedo ou mais tarde ficaríamos novamente sem nada... Fizemos durar o mais que podíamos penso eu. Ordem e método para não gastar tudo, e agora acabou. Mesmo assim, esse esforço todo parece-me agora abominável, mais valia ter gasto tudo de uma vez. Agora estamos velhos.
Doem-me os olhos, doem-me tanto os olhos, quando tento olhar em frente, o ardor torna a visão insuportável, desviar o olhar não me é permitido devido ao inchaço. Resta-me então fecha-los.
Peço-te, põe-me esse cubo de açúcar na boca enquanto me deito por um instante. O açúcar é o que nos resta agora que acabou. Esses pequenos e doces grãos brancos têm a propriedade de tornar tudo um pouco menos insuportável. Põe-me esse açúcar na boca enquanto experimento fechar os olhos.
Tu, porque a pele das minhas mãos há dias que não para de se soltar ao ponto de já fazer ferida. Já não posso tocar em nada sob pena de que se soltem de vez dos braços e me esvaia em sangue, o pouco que me resta. Tu, e por mais razão nenhuma tu, que mesmo agora não compreendes.
Vou deitar-me na cama, agora mesmo que o dia ainda vai a meio, e à medida que a minha boca seca absorve a custo o açúcar, vou dormitar, naquele estado de semi-consciência de que só alguns se dão conta, como quem está prestes a acordar e não quer acordar, e vai falando, naquele limbo entre o sono e a vigília com que já lá não está.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

XI

Tudo isto, isto e isto, é público. Esta é a expressão pública, decadente e universal. Esta é a expressão visceral daquilo que toda a gente desde sempre conhece e desvia o olhar. Aqui não se pronuncia o fim porque o fim já passou e ficou gravado na própria pronúncia.
Uma vez gravado em paredes de cavernas, agora gravado aqui, o público torna-se um arquivo prolongado de uma morte lenta, de uma identidade que apenas aqui existe, um anúncio que, sem mais, se anuncia a si mesmo. Numa repetição eterna de tudo aquilo que nunca foi e que mesmo assim insiste em tomar forma.
O privado, a pérola presa ao pescoço por um cordão negro, um sorriso sem dúvida verdadeiro e um cabelo orgulhosamente liso e castanho. Silêncio.
O privado não é a descida da Avenida que fizemos a meio da noite, o privado é a Avenida que todos os dias insiste em aparecer nessa mesma noite. O verbo é uma jura de para sempre, e o silêncio um espasmo que nos obriga a cair de joelhos, porque nunca mais.
Voltará talvez depois do juízo final quando já tudo estiver despachado, todos os livros queimados, quando tudo aquilo que há a fazer ficar de vez irremediavelmente por fazer. Voltará talvez a Avenida, com as folhas mortas de Outono, e será, talvez, finalmente Liberdade.
Enquanto esperamos, um copinho e mais outro.

sábado, 7 de agosto de 2010

X

Oh homem! Não faça isso! Não se desgrace! Então você vai-se por a beber água? Você não beba água. A água é uma coisa demasiado pura, alias! A água é uma contradição lógica, você não faça isso! Vem da terra homem, está tudo dito. Isso nem sequer tem sabor; nós não queremos nada com a terra. Uma coisa assim tão pura vinda do interior da terra? É de estranhar, tenho cá para mim que se trata de uma armadilha, não pode ser, não bate certo, a água é algo demasiadamente sem-sabor para existir num mundo tão fétido. Vá por mim, dizem que foi nela que principiou a vida e será seguramente por ela que a vida terminará. Se quer beber misture com qualquer coisa, nem que seja barro. Agora estar a beber isso assim tão puro. Afaste-se da água, foram os que bebiam água os responsáveis pelos maiores crimes da humanidade, deixaram-se levar pela correnteza e pelo asseio e pronto, acharam que podiam lavar isto. Homem, não faça isso, deixe a pureza para os peixinhos nadarem, água nem para o banho! Beba sumo, beba vinho, beba sangue!... Mas não toque em água.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

IX

Uma vez conheci um rapaz que mijava solenemente em cada árvore que encontrava. Aparência de outro modo meio tola e desajeitada, quando se aproximava de uma árvore, retirando lentamente o chapéu como a pedir licença, todo o seu corpo se endireitava, e o seu rosto adquiria uma concentração de quem se encontra de joelhos a rezar numa capela.
Isto aconteceu durante uma curta estadia minha lá para os lados da Guarda, onde as árvores são abundantes e a imaginação, como a bexiga, não conhece limites.
Finalmente, num acesso de coragem muito pouco característica da minha parte, perguntei-lhe a razão daquele comportamento. A resposta foi a que se segue:
“A terra ao girar produz um som característico. Quem durante uma qualquer noite nunca ouviu este som, deve virar o olhar para cima e dar graças aos céus por nunca assim, pelos ouvidos, ter sido irremediavelmente esmagado.
Repara. Tu. No modo como a folha amarelada se desprega da árvore que parece, agora, nunca verdadeiramente a ter sustentado, e se deixa, inerte, levar pela corrente da ribeira ou do vento, até que lentamente se afunde, numa curva, onde a infindável torrente do mundo, condescendente, por vezes abranda.
Senta-te, nem por isso abrandando, e observa como algum vento e água depois, uma nova folha verde aparece no espaço deixado pela outra, apenas para lhe suceder no fundo do rio ou da terra.
O meu mijo, de quem foge da água, dá uma pequena, mas eficaz contribuição para que não mais se caia na humilhação de ter de pedir ao mundo condescendência, para que numa qualquer curva nos possamos finalmente quedar. O meu mijo mata a árvore. O meu mijo para o tempo.
Quem na escuridão da noite nunca ouviu o som da terra a girar, deve tornar-se para o céu e dar graças. No caso de o fazer é melhor ter cuidado com as graças, porque o céu também se move, e o sítio para onde se apontam pode não ser o mesmo onde elas vão parar. O melhor talvez seja fazer como na caça, dar um desconto e apontar mais para a frente. Ou nem sequer apontar, fechar os olhos e disparar; assim no mesmo momento em que ouve pela primeira vez o mundo, acaba logo com ele.”
Não percebi. Disse que sim e pirei-me dali...

domingo, 20 de junho de 2010

VIII

No outro dia, numa daquelas manhãs húmidas de Sintra, houve um velho de outro tempo que passou pela rua. Vinha de preto, casaca comprida e comida pelo atrito dos anos. O atrito dos anos é uma expressão optimista, agora bastam segundos para que uma casaca se perca para sempre numa história que já não existe. Tinha o rosto enrugado e amarelo torrado, coberto por uma penugem russa que lhe cobria quase toda a cara, e à volta do olho um vinco profundo e redondo, como se tivesse passado toda a vida a espreitar por um monóculo, no entanto hei-lo agora a passar pela rua ainda meio nublada da manhã.
O gatilho quando tocado ao de leve, como que a sondar a pressão exacta do disparo, resiste, e a arma parece fundir-se numa só peça pesada e inteira. O gatilho, quando finalmente premido não oferece resistência, e a arma desvanece-se na bala que desaparece não se sabe bem onde; procura-la é procurar por um culpado quando a culpa já se encontra eliminada.
Mais uma vez, como deste sempre, a terra foi invadida pelo cheiro a queimado das lareiras dos homens. O velho seguiu caminho até à praça da igreja, parou de fronte para o templo e cheirou um pouco de rapé que retirou de uma minúscula caixa de marfim que tinha no bolso da casaca, passada essa oração seguiu caminho e desapareceu na neblina matinal. Aquela neblina que agora é só água gasosa que percorre as ruas e não trás mais do que verdete às paredes.

domingo, 30 de maio de 2010

VII

Sentado à secretária, no final de uma noite longa, de frente para o papel ainda vazio, o criador dá um breve suspiro: “É isto… não é isto?”. Debruça-se sobre a folha em branco e rabisca qualquer coisa sobre uma fada.
O quadrado circular não existe em nenhum mundo possível. E assim se cria o mundo… Um quadrado circular é um quadrado a girar sobre o seu centro; trata-se no fundo da revolta da geometria, do espancamento da lógica sem qualquer razão. Fixar o quadrado circular é contemplar o mundo.
“Dias etéreos…” Acrescenta mais qualquer coisa, contorce-se um pouco na cadeira e solta uma leve bufa, que lentamente, como um dia que clareia, envolve todo o quarto e segue caminho.
É este o material da criação.

domingo, 2 de maio de 2010

VI

O ultimato tinha sido claro, restavam-lhe agora cerca de trinta minutos para que o primeiro comboio abandonasse a cidade. O ultimato tinha sido claro, tinha de lá estar.
São cinco e meia da madrugada. Pensou que se talvez se tivesse movido de uma outra forma não se teria dado a ver, qual terá sido o gesto ou a palavra que deitou tudo a perder? São cinco e meia, o comboio parte às seis.
Preparou-se calmamente durante toda a noite, afinal ainda havia tempo. Tirou os pequenos resquícios de sujidade debaixo das unhas, barbeou-se com calma e lentidão, para que nenhum pelo ficasse esquecido para trás. Acabara agora de lavar cuidadosamente os pés. Não fez malas, tudo o que tinha em casa deveria lá ficar, menos ele. Ele deveria partir no primeiro comboio da manhã, eram essas as condições do ultimato. Se ao menos não se tivesse deixado apanhar.
O dia começava a clarear, aos poucos as formas coloridas iam aparecendo no horizonte. Ainda havia tempo para passar pelo pontão, despedir-se da praia como se faz no último dia de férias. Desceu as escadinhas estreitas da falésia e avançou lentamente pelo asfalto coberto de areia trazida pelo vento, até se sentar à beira do pontão.
Ela apareceu pouco depois, foi uma sorte incrível pensou, que a trouxe naquele instante àquele local. A baleia emergiu, soltando um repuxo de água, no preciso instante em que se sentou, aquele corpo imenso, quase todo submerso, reflectia os primeiros raios de luz. Acendeu um cigarro. “Não se trata de um momento mágico” pensou, “nada do que vejo tem outro significado para além do que vejo. A baleia que há pouco estava imersa, esta agora aqui quase inteira à minha frente, e eu pela primeira vez vejo-a e vejo carne”.
A baleia afundou-se por segundos e voltou à superfície soltando o mesmo jacto de água, avançou uns metros e voltou a desaparecer, desta vez definitivamente. O dia estava agora completamente lá e era belo, a água estava ainda enegrecida pelo sol oblíquo, por toda a praia multiplicavam-se as longuíssimas sombras dos pequenos pedregulhos, a brisa silenciosa da manhã acariciava a areia ainda húmida da maré alta. O pontão estava vazio.

domingo, 18 de abril de 2010

V

Um minuto da sua atenção se me permite. Disse-lhe ontem que os bilhetes de avião para as Caraíbas se encontram esgotados não é verdade? Pois de facto ainda estão, passa-se o mesmo com os voos para o Brasil… se me permite aconselho-o a pensar noutro meio de transporte… deixe-me ver… disse que queria ir para qualquer lado, certo? Pois, de facto todos os meios de transporte se encontram esgotados, até mesmo os comboios que já não serviam para nada. As chegadas ainda se dão com alguma tranquilidade, apesar de tudo… as pessoas quando chegam fazem uma barulheira infernal. Vê, há que encarar as coisas com alguma calma e algum humor, se estivesse noutro lado e quisesse chegar aqui talvez tivesse mais sorte. É preciso mantermo-nos atentos a este ecrã está a ver? Assim que houver alguma desistência envio-o logo para qualquer lado.
Ainda ontem estive aqui com uma senhora que estava na sua situação, às tantas tentou desistir da viagem, tento voltar a casa, só depois de apercebeu que já era tarde, que já não ia a tempo de apanhar o metro e que portanto seria perigoso regressar àquela hora. Acabou por pernoitar naqueles sofás além. Se aqueles sofás falassem, noutro dia sentou-se lá um ministro, ou melhor, não era bem ministro, mas dizia que tinha estado ligado a isso, entretanto não sei o que se passou, acabou o meu turno está a ver? Fui para casa. A senhora foi agora à casa de banho, mas já não vou envia-la, gosto mais de si, tem mais presença percebe? Não percebe… mas não faz mal, teria de vir para este lado e ver, mas como é obvio não o posso deixar vir.
Diga-me, porquê a insistência inicial em países tropicais? Se se tivesse convencido mais cedo de que de facto o destino não interessa provavelmente já estaria a caminho de qualquer lado, agora já é um pouco tarde… não é que me incomode estar aqui a falar consigo, só que me custa vê-lo assim, sinceramente; sempre temos um coração não é verdade?
Olhe! Falando no mal, cá está, acabadinho de se apresentar no ecrã, Canárias que lhe parece? Óptimo não é verdade? Vai poder finalmente ter o seu descanso, não diga é nada à mulher que foi à casa de banho, já só me faltava era ter aqui algum escândalo. Ora bem, o meio de transporte é o barco, gosta? Óptimo, a viagem será algo demorada mas bastante confortável garanto-lhe. Peço-lhe apenas que esteja no cais numero três às… oh não… parece que houve um engano, peço-lhe desculpa, mas este barco já zarpou, deve ter sido um engano da gerência… como apareceu aqui no ecrã pensei que… peço desculpa, às vezes parece que estão a gozar com uma pessoa.
Mas fique, não se vá embora, certamente arranjaremos algo a seu gosto, espere só mais um pouco…

domingo, 11 de abril de 2010

IV

Anda lá… tenho o jornal, sempre temos o jornal, podes lê-lo.
Estás perdida? Perdida? Não acredito… Cheguei agora, desculpa se não acredito… cheguei agora, desculpa se não acredito; esperei por ti horas a fio, convém que… não convém nada, já me habituei.
Tenho o hábito de beber, e bebo. É algo que me acompanha, sabes? Segue-me onde quer que esteja, pego no copo, dou um golo, e sinto aquilo descer até às entranhas. Depois vou sentindo cada vez menos, sabes, tenho esperança que… e tu? Não queres o jornal?
Parece que há coisas que se passam no mundo… és bonita…e depois põem-nas no jornal, contam histórias. Aqui mesmo assim ainda se contam histórias.
Estás a ouvir? Percebes? Histórias… Uma vez ia no eléctrico e um velho contou-me uma história, o quê?... Já não me lembro dela, mas era linda. Nunca mais andei de eléctrico.
Diz que isto da bebida é como as horas, diz que mata… não me olhes assim… não ligues… Sabes isso da morte é tudo mentira, o pessoal anda a enganar-nos… percebes? Mentem. A morte era antes, como o amor, agora que o amor acabou também já não pode haver morte. Resta-nos aquele sabor amargo que por vezes nos enche o corpo e a boca naquelas manhãs difíceis. Ao menos isso… contemos com isso… isso sim (é o amor que com o tempo se tornou azedo), é o que agora vale… aquilo… a pena.
Não ligues hoje não estou bem, sabes que isto é… isto está cheio de luz e dói abrir os olhos para isto.
Percebes? Percebes o que quero dizer? Faz um esforço… talvez também devesses beber. Não percebes…. Ocorre-me agora que de facto é difícil que percebas, mesmo bebendo ninguém percebe, eu no fundo também não. Riste? Sim, de facto tem a sua piada
Olha-me nos olhos, são castanhos vês? Vês? Uma vez engravidei, nasceu morto, fora isso teria sido uma criança perfeita, nem parecia que estava morta, gordinho… tinha os olhos semicerrados… já bebia nessa altura, olhos semicerrados, talvez tenha sido por isso, não sei. Percebes? Olhos semicerrados. Temos de ir ao norte, o pão, o vinho, as putas… lembras-te? Eu já não me lembro de grande coisa, é isso que me confere dignidade. Temos de ir.

domingo, 4 de abril de 2010

III

Hoje fui chamado ao patrão. Não o conhecia, nunca o tinha visto… Deram-me a ordem já ao final da tarde, quando me preparava para abandonar a secretária vazia, a meio do corredor, que me serve de posto de trabalho.
“O Senhor Doutor quer falar-lhe.”
Foda-se, logo hoje que não tinha feito a barba… ajeitei-me o melhor que pude e lá subi, meio a tremer, os três longos lances de escada que levam ao último andar. Amanhã deixo de fumar.
Ao fundo do esguio corredor – sempre gostei de casas com corredores – estava a secretária do Senhor Doutor, uma moça meio barbuda que empilhava freneticamente ficheiros.
“Boa tarde, o Senhor Doutor mandou chamar-me…”
“Deve com certeza ser engano, o Senhor Doutor não recebe ninguém hoje”
E apontando para a porta fechada do gabinete continuou:
“…de certeza que era hoje?”
Sim, foi hoje disso não pode haver dúvida, logo hoje que não tinha feito a barba…
“Espere, isso vê-se já, tenho aqui o seu ficheiro…”.
Também tenho um ficheiro… já me tinham falado disso os que já estiveram cá em cima… um ficheiro.
“Ah, agora percebo… O Senhor Doutor provavelmente queria dizer-lhe que o seu trabalho está fraco, não está a corresponder com aquilo que são os objectivos desta empresa… não apresenta resultados está a ver?”
“Mas senhora repare; sou o trabalhador mais antigo desta instituição, e nunca me disseram o que fazer… limito-me a esperar que sejam horas de sair, aliás com o devido respeito lhe digo que nunca vi um tostão…“.
“Ah, mas quanto a isso esteja descansado, o seu ordenado é cuidadosamente depositado, todos os meses, numa conta à parte. Ser-lhe-á entregue, como contratado, no dia em que nos deixar.”
Comecei a suar, contrato? Nunca vi nenhum contrato… merda… assinei papeis e não me lembro, a verdade é que quando entrei para aqui ainda andava um pouco desorientado… depois do que se passou é normal….
“Volte para a semana, pode ser que tenha mais sorte, sabe, o Senhor Doutor é um homem muito ocupado, e agora mais ainda com toda a corrupção que anda por aí, é preciso estar atento, e manter tudo na linha.
Volte para a semana, até lá tente fazer alguma coisa, veja os seus colegas como são empreendedores. Vá, volte para a semana, talvez possamos fazer algo por si”
Hoje embebedo-me, amanhã deixo de fumar.

domingo, 28 de março de 2010

II

Cerca de dois anos antes do fim… não… a semana passada estava eu… não, também não foi há dois dias… a memória com o passar do tempo funde-se com ele, torna-se escorregadia e como que separada. Uma vida própria… independente. Tem, agora evidentemente, muito que ver com a barata que percorre livremente todos os cantos da casa, caminha freneticamente e sem destino sobre livros, fotografias e restos do almoço até que, num dia feliz, ao cruzar-se connosco seja, descontraidamente, porque outra virá, esmagada. Enfim… já nem sei se era eu que lá estava… nesse dia… porém a imagem aparece-me agora completamente nítida.
Estava eu sentado num banco de jardim, num banco desses amontoados de merda e pombos a que se chamavam jardins, que não eram maus de todo diga-se. Estava eu sentado num banco de jardim, divertidamente distraído por uma escavação, mesmo em frente, cujo fim desconhecia. A dada altura, ou melhor, na altura precisa em que começa a memória, um dos trabalhadores desenterrou aquilo que, de uma forma tácita, todos concordamos ser uma lista telefónica. Devidamente enegrecida pelo tempo, emanava um terrível cheiro adocicado, que imediatamente reconheci como familiar, mas que ainda hoje não sou capaz de identificar a origem. Diga-se que com o tempo fui deixando de ser capaz de muita coisa, e já nem acredito que alguma tenha sido.
Avante… num daqueles momentos tristemente democráticos, um dos trabalhadores foi eleito para, empoleirando-se no banco de onde fui obrigado a levantar-me, ler, para a audiência que motivada pela estranha descoberta se foi ali aninhando, todos os nomes da lista.
À medida que a leitura avançava, interrompida aqui e ali pelos pequenos borrões de terra que perturbavam a nitidez do texto, cada nome, que pela boca do trolha soava naquele ar de fim de tarde, era nítido e terrivelmente transparente, até ao ponto em que, com ele, o meu cérebro ser invadido por imagens de toda a sua vida, por tudo aquilo que ouviu, disse e sentiu. Cada nome caia em mim e, sempre com aquele cheiro adocicado, desvendava-me a vida que o tinha tido. O pânico gerou-se, é muita gente, merda! Não conseguia respirar, já não sabia, nem sequer sabia se o meu coração se conteria no peito, não sabia, não queria saber, não queria ir, não queria ver! Merda! Estava a estorricar por dentro, cada nome queimava qualquer coisa, e o cheiro!
Abri caminho à pancada… eu que nunca pesei mais que quarenta quilos abri caminho à pancada para fora dali. Os outros continuaram na mesma posição, era o único naquele estado. Invadido pelo pânico corri rua abaixo, subi a muralha da cidade, e aí me deixei ficar (voltado para fora como evidente). Foi a última vez que corri ou andei, e ainda hoje estou - estou? - na murada (não sei bem se é uma muralha…).
Hoje, durante os meus vários afazeres diários, lembrei-me - eu? - da lista telefónica… não sei bem porquê.

domingo, 21 de março de 2010

I

Mais um café!... Atentemos ao presente... façamos um esforço... merda.
Um passeio, isso, demos um passeio, pelo mundo, pelo país – sejamos francos! – pela mesa do lado. Agora, é quando podemos. Agora, vamos descobrir a que corresponde este fim, qual o seu rosto. Viveremos, agora que todo acabou, como quem faz um desenho, levemente, sem pressa sobre uma toalha de papel.
Lá está ele... sempre o mesmo... o homem da mesa do lado. Cabelo negro, meio oleoso, e um rosto, como todos os outros rostos, amarelado, permanentemente marcado por uma brilhante, e aparentemente indelével, marca de suor. Os olhos do homem da mesa do lado não são visíveis, são apagados pela sua aparência disforme que, sejamos francos, sugere a presença de minúsculas pragas que lhe infestam o corpo. É este o seu rosto.
Estamos fartos, é cansativa a mesa ao lado, pesada, algo escura, e sobretudo malcheirosa. Estamos cansados, curiosamente nenhuma outra mesa se encontra ocupada, convém referir que afinal de contas isto já fechou... não há mais nada onde repousar a vista... façamos um esforço. O homem da mesa ao lado está à espera, pelo menos foi o que uma vez disse, em tom de confidência, ao empregado: “ando a ver se me pagam o que devem...”. Foi a única vez que o ouvimos falar. Aparentemente trabalhou... nunca recebeu... se receber não terá dias diferentes. Não deve ser muito, nunca deve ter feito grande coisa.
Que hora ingrata para esperar por dinheiro... o homem da mesa ao lado, no entanto, ainda espera. Parece que hão de vir acertar contas. Num sitio tão sujo e monótono nunca ninguém aparecerá para acertar contas, disso, nos dias que correram todos para aqui, estamos certos... resta-nos o calor fétido que emana o homem da mesa ao lado, à falta de melhor esperamos com ele.