domingo, 2 de maio de 2010

VI

O ultimato tinha sido claro, restavam-lhe agora cerca de trinta minutos para que o primeiro comboio abandonasse a cidade. O ultimato tinha sido claro, tinha de lá estar.
São cinco e meia da madrugada. Pensou que se talvez se tivesse movido de uma outra forma não se teria dado a ver, qual terá sido o gesto ou a palavra que deitou tudo a perder? São cinco e meia, o comboio parte às seis.
Preparou-se calmamente durante toda a noite, afinal ainda havia tempo. Tirou os pequenos resquícios de sujidade debaixo das unhas, barbeou-se com calma e lentidão, para que nenhum pelo ficasse esquecido para trás. Acabara agora de lavar cuidadosamente os pés. Não fez malas, tudo o que tinha em casa deveria lá ficar, menos ele. Ele deveria partir no primeiro comboio da manhã, eram essas as condições do ultimato. Se ao menos não se tivesse deixado apanhar.
O dia começava a clarear, aos poucos as formas coloridas iam aparecendo no horizonte. Ainda havia tempo para passar pelo pontão, despedir-se da praia como se faz no último dia de férias. Desceu as escadinhas estreitas da falésia e avançou lentamente pelo asfalto coberto de areia trazida pelo vento, até se sentar à beira do pontão.
Ela apareceu pouco depois, foi uma sorte incrível pensou, que a trouxe naquele instante àquele local. A baleia emergiu, soltando um repuxo de água, no preciso instante em que se sentou, aquele corpo imenso, quase todo submerso, reflectia os primeiros raios de luz. Acendeu um cigarro. “Não se trata de um momento mágico” pensou, “nada do que vejo tem outro significado para além do que vejo. A baleia que há pouco estava imersa, esta agora aqui quase inteira à minha frente, e eu pela primeira vez vejo-a e vejo carne”.
A baleia afundou-se por segundos e voltou à superfície soltando o mesmo jacto de água, avançou uns metros e voltou a desaparecer, desta vez definitivamente. O dia estava agora completamente lá e era belo, a água estava ainda enegrecida pelo sol oblíquo, por toda a praia multiplicavam-se as longuíssimas sombras dos pequenos pedregulhos, a brisa silenciosa da manhã acariciava a areia ainda húmida da maré alta. O pontão estava vazio.