quinta-feira, 21 de abril de 2011

XXIX

     Ele está prestes a ser fuzilado. Atado a um poste de madeira no pátio do estabelecimento correcional espera pela sua bala. Nem um som, excepto o da carabina a carregar, nada de não familiar, ouviu este som centenas senão milhares, de vezes ao longo da sua vida, o som da carabina a carregar. Do meio do pátio do estabelecimento correcional olha para cima, o céu pesado anuncia chuva. Lá fora por certo alguém recolhe apressadamente a roupa do estendal. Uma contínua brisa gelada arrepia-lhe a pele que se contrai como quando em pequeno esperava em calções pelas aulas de ginástica. Nem um som, excepto o da carabina a carregar. Nas costas um ligeiro desconforto por causa de uma farpa saída do poste. Nada a assinalar, apenas um ligeiro gosto a ferro como se tivesse vindo a correr. Nem um som, excepto o da carabina a carregar, nada que diga que vai acabar.

terça-feira, 19 de abril de 2011

XXVIII



     Para mais, para uma medida sempre maior, cortadas as vazas não há limites, o jogo avança perdido carta a carta sobre a mesa verde. Essa será a verdadeira beleza, inevitavelmente perdido, o jogo, sem que por isso se abandone a mesa, sem que por isso cada carta seja tirada com menos furor, até que por fim as luzes se apaguem, todos os apostadores abandonem sala e nós mesmo assim, no escuro, vasculhando as cartas deitadas procurando por mais. 

     Apenas porque cada paisagem se embrulha numa torrente imparável de cor, cada folha confundindo-se ao longe, com aquela perdida há já tanto tempo. E as trepadeiras incansáveis sempre a subir pelas fachadas cada vez mais velhas sem que por isso o sol se cubra de vergonha. 

     Mais um jogo! Mais um jogo! Mais um jogo!

domingo, 17 de abril de 2011

XXVII

     É possível que não estejamos a ver bem, que o próprio facto de ter, no primeiro dia, aberto os olhos para contemplar o mundo, nos tenha secado para o chorar. Em cada toque há o frio do mármore que se anuncia. Foi esse mundo que os nossos olhos viram no primeiro dia, são esses os olhos que de cada vez aumentam essa perda, abrem essa ferida procurando sempre a mesma hora, o segundo imediatamente antes à abertura. Ontem.