domingo, 28 de março de 2010

II

Cerca de dois anos antes do fim… não… a semana passada estava eu… não, também não foi há dois dias… a memória com o passar do tempo funde-se com ele, torna-se escorregadia e como que separada. Uma vida própria… independente. Tem, agora evidentemente, muito que ver com a barata que percorre livremente todos os cantos da casa, caminha freneticamente e sem destino sobre livros, fotografias e restos do almoço até que, num dia feliz, ao cruzar-se connosco seja, descontraidamente, porque outra virá, esmagada. Enfim… já nem sei se era eu que lá estava… nesse dia… porém a imagem aparece-me agora completamente nítida.
Estava eu sentado num banco de jardim, num banco desses amontoados de merda e pombos a que se chamavam jardins, que não eram maus de todo diga-se. Estava eu sentado num banco de jardim, divertidamente distraído por uma escavação, mesmo em frente, cujo fim desconhecia. A dada altura, ou melhor, na altura precisa em que começa a memória, um dos trabalhadores desenterrou aquilo que, de uma forma tácita, todos concordamos ser uma lista telefónica. Devidamente enegrecida pelo tempo, emanava um terrível cheiro adocicado, que imediatamente reconheci como familiar, mas que ainda hoje não sou capaz de identificar a origem. Diga-se que com o tempo fui deixando de ser capaz de muita coisa, e já nem acredito que alguma tenha sido.
Avante… num daqueles momentos tristemente democráticos, um dos trabalhadores foi eleito para, empoleirando-se no banco de onde fui obrigado a levantar-me, ler, para a audiência que motivada pela estranha descoberta se foi ali aninhando, todos os nomes da lista.
À medida que a leitura avançava, interrompida aqui e ali pelos pequenos borrões de terra que perturbavam a nitidez do texto, cada nome, que pela boca do trolha soava naquele ar de fim de tarde, era nítido e terrivelmente transparente, até ao ponto em que, com ele, o meu cérebro ser invadido por imagens de toda a sua vida, por tudo aquilo que ouviu, disse e sentiu. Cada nome caia em mim e, sempre com aquele cheiro adocicado, desvendava-me a vida que o tinha tido. O pânico gerou-se, é muita gente, merda! Não conseguia respirar, já não sabia, nem sequer sabia se o meu coração se conteria no peito, não sabia, não queria saber, não queria ir, não queria ver! Merda! Estava a estorricar por dentro, cada nome queimava qualquer coisa, e o cheiro!
Abri caminho à pancada… eu que nunca pesei mais que quarenta quilos abri caminho à pancada para fora dali. Os outros continuaram na mesma posição, era o único naquele estado. Invadido pelo pânico corri rua abaixo, subi a muralha da cidade, e aí me deixei ficar (voltado para fora como evidente). Foi a última vez que corri ou andei, e ainda hoje estou - estou? - na murada (não sei bem se é uma muralha…).
Hoje, durante os meus vários afazeres diários, lembrei-me - eu? - da lista telefónica… não sei bem porquê.