terça-feira, 21 de dezembro de 2010

XVII

     Come sim, come não, há mesmo quem coma dia sim dia não. Não tu. A ti é-te dado a escolher entre a guloseima e a fome. Tu comes todos os dias guloseimas, gomas das mais variadas cores e feitios, mas sempre doces. Falta-te o bife, e é por ele que padecerás. É uma porra, és como toda a gente, sempre a merda do bife. Bife de vaca, de porco de cavalo, e nunca nenhum te passou pelas beiças, nem mesmo o sem sabor do peru.

     Entre ti e a linha do comboio, quando estás mesmo à borda do cais, pronto para saltar, há uma infinita distância.

     É quase manhã e os primeiros melros já cantam por entre voos rasantes, quase contra a janela, quase estatelados no tronco que parecia estar ali. Nesse caminho é certo que o arrependimento chegará, é o instante imediatamente anterior ao embate do corpo contra a linha.

     Sentas-te à janela, mastigas infrutiferamente uma goma do dia anterior, pensas em recolher todas as gomas do mundo numa bola de açúcar gigante, no entanto isso não é fácil. Continuas a mastigar.

     Só há uma coisa a fazer, atiras-te cantando. Na impossibilidade do bife, cantas sem respirar entre as palavras, sem ritmo seja perceptível mesmo para ti, e no final de cada nota apenas a seguinte sem qualquer distinção. Resta então apenas escolher a música. Ou o grito.