domingo, 17 de outubro de 2010

XIV

Senhor. Diga-me, há quantos anos está nessa cadeira?
Meu caro, nesta altura não lhe sei dizer, mas penso, e quase lhe posso jurar, que já aqui estou há algum tempo. Mas se me permite a chamada de atenção, repare que não se trata de uma cadeira qualquer, veja como as fibras da madeira se moldaram cuidadosamente ao meu corpo, como o tempo me proporcionou este lugar privilegiado e confortável.
Não vejo qualquer razão para sair daqui, estou numa posição excepcional de costas para a janela, o que me permite ler confortavelmente o jornal que o rapazito me tráz todos os dias. Para alem do mais se me levantasse estaria com certeza sujeito a partir uma perna na primeira irregularidade da carpete. De todo o modo penso já não ter forças para me levantar. Em tempos andei por aí, mas depois desisti, o cansaço torno-se insuportável. A minha paciência esgotou-se e sentei-me.
As necessidades faço-as mesmo aqui, sem que isso me cause o mínimo transtorno, na verdade é isso que me mantém quente. Tenho ainda um criado que me traz a aguardente da qual me alimento desde que me sentei.
Nunca casou?
Sim, claro, em tempos... ou melhor, estive noivo, mas nunca cheguei a consumar nada. Nessa altura já me encontrava por aqui o que não me deixou ir ao cartório. Foi um desgosto muito grande para a menina, muito sal se colou àquela cara nesse tempo. Acabou nessa altura por ficar comigo mesmo assim. O problema era o cheiro dizia, tentava em vão limpar-me e fazer-me andar um pouco. Até que uma tarde desistiu. Subiu lentamente até aqui ao quarto dirigiu-se à janela atrás de mim e atirou-se. Não vi nada, apenas senti a sua sombra aparecer e desaparecer e o som seco do corpo a esborrachar-se lá em baixo.
Eu nunca tinha gostado tanto de ninguém, na verdade foi a única mulher que conheci. Como lá fora não passa ninguém, a não ser a muitos quilómetros, ou rapidamente para ir a algum lado nunca ninguém recuperou o corpo, nunca ninguém quis saber. O cheiro de tempos a tempos ainda sobe pela fachada e entra pelo quarto dentro. E eu não consigo escapar-lhe, ao cheiro... ao cheiro que constantemente reaparece.
E agora?
Nada. Mas porquê tanta pergunta? Isso não é nada saudável, em vez de fazer perguntas feche os olhos e siga em frente, vá ao casino. Nunca percebi as pessoas que dizem que não vão ao casino porque não sabem jogar, esquecem-se do princípio fundamental destas coisas. Rapaz, vá e atire os dados! Sinta prazer ao faze-lo, contemple o infinito enquanto eles não param de rodar
Agora o quê? Veja como os sulcos que os meus braços abrem nos braços da cadeira estão cada vez mais fundos, em breve estarei completamente afundado na cadeira e ela fechar-se-á sobre mim. E nesse dia sim, pela primeira vez, apenas o leve cheiro da madeira.