domingo, 18 de abril de 2010

V

Um minuto da sua atenção se me permite. Disse-lhe ontem que os bilhetes de avião para as Caraíbas se encontram esgotados não é verdade? Pois de facto ainda estão, passa-se o mesmo com os voos para o Brasil… se me permite aconselho-o a pensar noutro meio de transporte… deixe-me ver… disse que queria ir para qualquer lado, certo? Pois, de facto todos os meios de transporte se encontram esgotados, até mesmo os comboios que já não serviam para nada. As chegadas ainda se dão com alguma tranquilidade, apesar de tudo… as pessoas quando chegam fazem uma barulheira infernal. Vê, há que encarar as coisas com alguma calma e algum humor, se estivesse noutro lado e quisesse chegar aqui talvez tivesse mais sorte. É preciso mantermo-nos atentos a este ecrã está a ver? Assim que houver alguma desistência envio-o logo para qualquer lado.
Ainda ontem estive aqui com uma senhora que estava na sua situação, às tantas tentou desistir da viagem, tento voltar a casa, só depois de apercebeu que já era tarde, que já não ia a tempo de apanhar o metro e que portanto seria perigoso regressar àquela hora. Acabou por pernoitar naqueles sofás além. Se aqueles sofás falassem, noutro dia sentou-se lá um ministro, ou melhor, não era bem ministro, mas dizia que tinha estado ligado a isso, entretanto não sei o que se passou, acabou o meu turno está a ver? Fui para casa. A senhora foi agora à casa de banho, mas já não vou envia-la, gosto mais de si, tem mais presença percebe? Não percebe… mas não faz mal, teria de vir para este lado e ver, mas como é obvio não o posso deixar vir.
Diga-me, porquê a insistência inicial em países tropicais? Se se tivesse convencido mais cedo de que de facto o destino não interessa provavelmente já estaria a caminho de qualquer lado, agora já é um pouco tarde… não é que me incomode estar aqui a falar consigo, só que me custa vê-lo assim, sinceramente; sempre temos um coração não é verdade?
Olhe! Falando no mal, cá está, acabadinho de se apresentar no ecrã, Canárias que lhe parece? Óptimo não é verdade? Vai poder finalmente ter o seu descanso, não diga é nada à mulher que foi à casa de banho, já só me faltava era ter aqui algum escândalo. Ora bem, o meio de transporte é o barco, gosta? Óptimo, a viagem será algo demorada mas bastante confortável garanto-lhe. Peço-lhe apenas que esteja no cais numero três às… oh não… parece que houve um engano, peço-lhe desculpa, mas este barco já zarpou, deve ter sido um engano da gerência… como apareceu aqui no ecrã pensei que… peço desculpa, às vezes parece que estão a gozar com uma pessoa.
Mas fique, não se vá embora, certamente arranjaremos algo a seu gosto, espere só mais um pouco…

domingo, 11 de abril de 2010

IV

Anda lá… tenho o jornal, sempre temos o jornal, podes lê-lo.
Estás perdida? Perdida? Não acredito… Cheguei agora, desculpa se não acredito… cheguei agora, desculpa se não acredito; esperei por ti horas a fio, convém que… não convém nada, já me habituei.
Tenho o hábito de beber, e bebo. É algo que me acompanha, sabes? Segue-me onde quer que esteja, pego no copo, dou um golo, e sinto aquilo descer até às entranhas. Depois vou sentindo cada vez menos, sabes, tenho esperança que… e tu? Não queres o jornal?
Parece que há coisas que se passam no mundo… és bonita…e depois põem-nas no jornal, contam histórias. Aqui mesmo assim ainda se contam histórias.
Estás a ouvir? Percebes? Histórias… Uma vez ia no eléctrico e um velho contou-me uma história, o quê?... Já não me lembro dela, mas era linda. Nunca mais andei de eléctrico.
Diz que isto da bebida é como as horas, diz que mata… não me olhes assim… não ligues… Sabes isso da morte é tudo mentira, o pessoal anda a enganar-nos… percebes? Mentem. A morte era antes, como o amor, agora que o amor acabou também já não pode haver morte. Resta-nos aquele sabor amargo que por vezes nos enche o corpo e a boca naquelas manhãs difíceis. Ao menos isso… contemos com isso… isso sim (é o amor que com o tempo se tornou azedo), é o que agora vale… aquilo… a pena.
Não ligues hoje não estou bem, sabes que isto é… isto está cheio de luz e dói abrir os olhos para isto.
Percebes? Percebes o que quero dizer? Faz um esforço… talvez também devesses beber. Não percebes…. Ocorre-me agora que de facto é difícil que percebas, mesmo bebendo ninguém percebe, eu no fundo também não. Riste? Sim, de facto tem a sua piada
Olha-me nos olhos, são castanhos vês? Vês? Uma vez engravidei, nasceu morto, fora isso teria sido uma criança perfeita, nem parecia que estava morta, gordinho… tinha os olhos semicerrados… já bebia nessa altura, olhos semicerrados, talvez tenha sido por isso, não sei. Percebes? Olhos semicerrados. Temos de ir ao norte, o pão, o vinho, as putas… lembras-te? Eu já não me lembro de grande coisa, é isso que me confere dignidade. Temos de ir.

domingo, 4 de abril de 2010

III

Hoje fui chamado ao patrão. Não o conhecia, nunca o tinha visto… Deram-me a ordem já ao final da tarde, quando me preparava para abandonar a secretária vazia, a meio do corredor, que me serve de posto de trabalho.
“O Senhor Doutor quer falar-lhe.”
Foda-se, logo hoje que não tinha feito a barba… ajeitei-me o melhor que pude e lá subi, meio a tremer, os três longos lances de escada que levam ao último andar. Amanhã deixo de fumar.
Ao fundo do esguio corredor – sempre gostei de casas com corredores – estava a secretária do Senhor Doutor, uma moça meio barbuda que empilhava freneticamente ficheiros.
“Boa tarde, o Senhor Doutor mandou chamar-me…”
“Deve com certeza ser engano, o Senhor Doutor não recebe ninguém hoje”
E apontando para a porta fechada do gabinete continuou:
“…de certeza que era hoje?”
Sim, foi hoje disso não pode haver dúvida, logo hoje que não tinha feito a barba…
“Espere, isso vê-se já, tenho aqui o seu ficheiro…”.
Também tenho um ficheiro… já me tinham falado disso os que já estiveram cá em cima… um ficheiro.
“Ah, agora percebo… O Senhor Doutor provavelmente queria dizer-lhe que o seu trabalho está fraco, não está a corresponder com aquilo que são os objectivos desta empresa… não apresenta resultados está a ver?”
“Mas senhora repare; sou o trabalhador mais antigo desta instituição, e nunca me disseram o que fazer… limito-me a esperar que sejam horas de sair, aliás com o devido respeito lhe digo que nunca vi um tostão…“.
“Ah, mas quanto a isso esteja descansado, o seu ordenado é cuidadosamente depositado, todos os meses, numa conta à parte. Ser-lhe-á entregue, como contratado, no dia em que nos deixar.”
Comecei a suar, contrato? Nunca vi nenhum contrato… merda… assinei papeis e não me lembro, a verdade é que quando entrei para aqui ainda andava um pouco desorientado… depois do que se passou é normal….
“Volte para a semana, pode ser que tenha mais sorte, sabe, o Senhor Doutor é um homem muito ocupado, e agora mais ainda com toda a corrupção que anda por aí, é preciso estar atento, e manter tudo na linha.
Volte para a semana, até lá tente fazer alguma coisa, veja os seus colegas como são empreendedores. Vá, volte para a semana, talvez possamos fazer algo por si”
Hoje embebedo-me, amanhã deixo de fumar.