quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

XVIII

      Alguém que caminhando pela rua pára. Alguém que prostrando-se desconhece a arte de se prostrar. Alguém num dia de Verão encosta a cabeça à terra e desaparece entre raízes e grãos de areia.
      À frente um monte. Um monte que se desdobra em erupções do granito. Granito que se eleva pelo meio das silvas e dos medronheiros. As silvas e os medronheiros que se multiplicam e explodem em flor. Um carvalho meio tombado mais adiante sobre o sopé enegrecido pela luz oblíqua da manhã. Ao longe o grito de um melro que corta todo negro por entre a folhagem. O melro lá desde a aurora. A ribeira lenta e melódica que desagua lá em baixo numa torrente insuperável e lamacenta de tudo o que há de ser. Para trás não há caminho, azinheiras de cada vez mais fechadas e tudo o que se vê é vivo. Para tras tudo grita. Sentamo-nos na sombra de um marmeleiro, experimentamos o fruto. Lá bem no ar um açor paira sob o sol. Aqui faremos Lisboa.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

XVII

     Come sim, come não, há mesmo quem coma dia sim dia não. Não tu. A ti é-te dado a escolher entre a guloseima e a fome. Tu comes todos os dias guloseimas, gomas das mais variadas cores e feitios, mas sempre doces. Falta-te o bife, e é por ele que padecerás. É uma porra, és como toda a gente, sempre a merda do bife. Bife de vaca, de porco de cavalo, e nunca nenhum te passou pelas beiças, nem mesmo o sem sabor do peru.

     Entre ti e a linha do comboio, quando estás mesmo à borda do cais, pronto para saltar, há uma infinita distância.

     É quase manhã e os primeiros melros já cantam por entre voos rasantes, quase contra a janela, quase estatelados no tronco que parecia estar ali. Nesse caminho é certo que o arrependimento chegará, é o instante imediatamente anterior ao embate do corpo contra a linha.

     Sentas-te à janela, mastigas infrutiferamente uma goma do dia anterior, pensas em recolher todas as gomas do mundo numa bola de açúcar gigante, no entanto isso não é fácil. Continuas a mastigar.

     Só há uma coisa a fazer, atiras-te cantando. Na impossibilidade do bife, cantas sem respirar entre as palavras, sem ritmo seja perceptível mesmo para ti, e no final de cada nota apenas a seguinte sem qualquer distinção. Resta então apenas escolher a música. Ou o grito.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

XVI

E o branco que é branco, o preto que é preto e as listas telefónicas que não se distribuem sozinhas. A palavra que não é certa e o momento que não é oportuno e o carro que não pega a mota que não anda e o passarinho que já não canta e o dia que não chega. E o mundo que diz que gira e o rato que vai roendo, devagarinho, e o espaço que mesmo assim não existe e o tempo que por isso vai existindo, o elástico que não estica mais mais coisas e todas as coisas que há na dispensa, a dispensa que é escura e cada vez menos atulhada cada vez mais cheia que se arruma e não se deixa de o fazer aqui a despensa cada vez mais cheia e a outra cada vez mais vazia sempre assim sempre dentro do arco o arco do triunfo e não há jogo de cintura que aguente o arco no sítio e tudo se vai passando assim como pela segunda vez. Ver revendo. O dia que já não é dia porque foi adiado para depois, para depois de amanhã o galo que canta ao dia o cão que ladra ao dia e o dia nem vê-lo. Esta noite o rato acaba de roer a corda que segura as cuecas penduradas que se soltam do estendal que nos caem na cara no preciso momento em que nós sempre nós olhamos em profundíssimos sonhos poéticos o céu da noite escura. Há coisas em que não se toca dizemos nós ao rato que responde que as cuecas é que sabem disso. Guardamos o presente dos céus dobradinhas com cuidado por cima da cómoda. Lá fora há uma ponta de cigarro que inflama e desflama no escuro por trás dos caixotes do lixo. C’est la gare