domingo, 21 de agosto de 2011

XXXV

Quando se come engole-se

Quando se deita dorme-se

Quando se queixa come-se

Quando se quer fode-se.




Entrou a esvoaçar pela janela aberta e posou, como uma pena na brisa, em cima da mesa da casa de jantar.

Retirou as asas não sem dificuldade, primeiro apertando-as ainda mais, soltando um lado e não o outro, esfregando-se contra as paredes e por fim fazendo-as escorregar até aos pés. Pendurou-as junto à porta e sentou-se exactamente abaixo, no chão.

Acendeu uma pequena beata que guardava no bolso para dias como este. Deixou-a arder lentamente entre o dedo mindinho e o vizinho.




Lá fora o dia terminava, tornava-se cinzento, nebuloso, frio.




Olhou para cima e com a beata incendiou uma primeira pena, que passando a chama às seguintes, e essas às outras até que as asas formaram uma chama imensa, redonda, imediatamente por cima da cabeça. Pedaços negros, carbonizados, ainda a fumegar caiam-lhe lentamente sobre os ombros, até que tudo acabou.

Lentamente dirigiu-se à janela, retirou o vaso de cima do parapeito e sentou-se, recebendo a brisa do fim da tarde, enquanto o dia terminava, o céu, primeiro cinzento, nebuloso. Depois negro, estrelado ainda, a noite.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

XXXIV



Esquece tudo o que aprendeste no exército. 

Aqui, não há lugar para isso, aqui tudo está perdido. Atacamos ao meio dia e meia hora, ao toque da corneta do almoço. Evitamos assim o peso dos talheres na corrida. 

Deve acontecer depressa, embora calmamente. Ainda é cedo, o importante é esquecer tudo o que aprendeste no exército, esta acção deve ser levada a cabo com o máximo pormenor. Larga a espingarda, acontecerá depressa, mas não tão depressa. Luvas grossas, açaime, fato macaco e mais nada. 

Quando soar a corneta corres e atacas, olhos bem cerrados, acima de tudo olhos bem cerrados. Deves falar sempre, a toda a hora, sem parar, sem deixar espaço. Até ao fim. 

Não esperes que te ajude, que te dê a mão, que não volte para aqui e te veja correr desenfreadamente. Não pronuncies o meu nome, não digas que alguma vez me viste, ou que falaste comigo. 

Corres sempre, olhos sempre fechados, sempre a falar, sempre sem parar. A dada altura o peito tornar-se-á mais pequeno, sentirás dificuldade em respirar, em recuperar o fôlego, em correr. É esse o sinal de que te aproximas. A terra, os montes, a erva... todo se aproxima e te consome, e tu nunca pararás de falar, nunca abrirás os olhos sob pena de explodires. Aí tudo estará perdido. Encore 




Quando o ataque terminar terás vencido ou perdido. Feitas as contas tanto faz, não tenhas medo. Ao abrir os olhos não tenhas medo, agora que a hora de almoço se aproxima. E o Sol bem alto aquecendo a terra. Será rápido, um instante, só uma vez.

domingo, 7 de agosto de 2011

XXXIII



     Vencido, está sentado contra o muro com a coluna partida em três partes. Uma ninharia, convinhamos, comparada com o número de partes em que uma coluna pode ser partida. Nenhuma das três a correcta. Contra o muro ainda respira, ainda é capaz de se reproduzir. 

     Outros virão, virão e tirarão partido do seu corpo imóvel, partido. Regalar-se-ão com a sua carne e o seu sangue até que nenhum sinal reste. 

     Respirará ainda, reproduzir-se-á ainda. Amanhã conseguiremos ainda ouvir os seus passos, o seu rastejo. Amanhã procuraremos por ele, ainda. De tempos a tempos iremos vê-lo ainda ao longe de fugida, desviaremos o nosso caminho na sua direcção, apenas porque caminhamos ainda. 

     Num dia, numa noite, qualquer que seja, ao acaso, sem que nada o faça prever, seremos capazes de o escutar respirar, ainda, mesmo ali ao pé. Acenderemos todas as luzes, gritaremos palavras de ordem, de ódio, e depois de perdão. Balbuciaremos ainda o seu nome ao adormecer. 

     O lagarto, vencido e espezinhado, deixará de respirar um dia. 

     Ainda In Memoriam... do lagarto.