segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

XX



     Certa manhã, apresentou-se diante do espelho. Ia sair. O dia começava frio, tomar banho ou fazer a barba revelaram-se então um trabalho demasiadamente penoso e, dada a fragilidade da sua figura, poderia mesmo vir a tornar-se algo letal. Nunca se sabe, e uma peumo... pneuli...peumolin... uma doença é sempre algo de desgastante, o corpo ressente e grita miseravelmente o cobarde ataque. 

     Diante do espelho havia pouco que ver, o cabelo, antes desleixado e cheio de remoinhos, revelava-se agora (por não ver água) em todo o seu esplendor, ligeiramente abrilhantado; fácil de pentear libertava ainda um odor adocicado. Estava bonito. Saiu. 

     Quando chegou a rua já lá estava, gente taralhoca andava para trás e para diante num redemoinho impensável para ele habituado a ver de cima. Quem vê de cima não vê bem, não pode ver bem, vê de cima, isso, se isso não explicar tudo, explica alguma coisa e se não explicar alguma coisa continua tudo como estava o que não faz mais mal nenhum. 

     Não sabia bem por onde andar, ao fim de três ou quatro encontrões com as primeiras velhas que lhe apareceram, muito cansadas, não se sabe bem de onde, olhou para trás. A porteira começara a lavar a escada, seguiu em frente cambaleante junto aos prédios. Em pânico mas em frente. Entrou num pequeno café, a televisão insistia em gritar qualquer coisa, qualquer aniversário... one small step for man... os poucos que lá estavam falavam desse dia, que aparentemente parecia ser o dia em que estavam, só que na altura estavam na cama. Saiu. 

     Adiante, na esquina onde terminava a sua rua cruzou-se com umas pernas brancas e enérgicas que o fizeram sentir-se... sentir-se? Sim, sentiu-se e seguiu-as a passos largos rua fora... afinal... 

     Seguiu aqueles tornozelos, deliciou-se com a forma como naturalmente se esgueiravam por entre a multidão; seguiu-os até os ver desaparecer num pulo juvenil para dentro de um autocarro, aí parou. Com a mão direita retirou os cabelos que lhe tinham caído para a testa de tanto olhar para baixo, não podia continuar, queria, não podia. Por alguma razão obscuramente presente, ou por razão nenhuma não conseguiu dar nem mais um passo. Estava paralisado. 

     A multidão que saía de dentro dos autocarros arrastou-o rua a baixo aos empurrões, os mais afoitos percebendo a sua fraqueza agarravam-lhe nas mãos e davam-lhe grandes bacalhaus, e ele deixava-se ir à deriva no meio daquela mortalha de gente que lhe gritava, a ele! e lhe puxava os cabelos sempre a sorrir, sempre a sorrir. 

     Já era quase mesmo a bem dizer... dia! quando fechou os olhos, num último arrepio de força começou a libertar-se, e subiu por cima de toda a gente, de todas as vozes, das palavras, dos gritos, dos ecos, dos choros das crianças cheias de ranho, das bengalas, das fraldas, das televisões, subiu num salto por cima disso tudo e lá em cima era silêncio. Viu ao longe o autocarro afastar-se levando as branquíssimas pernas para longe. Olhou-se, viu o seu corpo ainda meio destrambelhado e ensanguentado, mas já não ouvia a gente, tudo era calma. Mas nada estava calmo, subitamente um som, a princípio fraco e depois mais nítido, preencheu todo o seu corpo, tapou os ouvidos, mas isso ainda aumentou aquele ruído estranho. Todo ele estremeceu, todo o seu corpo se enrijeceu de terror. O autocarro dobrou a esquina e desapareceu... ele dobrou-se sobre si mesmo como um cão e deitou-se pálido; era o som do seu coração que batia, do sangue que lhe corria nas veias, logo a ele. Afinal não...