sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

XXI



     Cheguei ao quarto do Sr. Matias. As enfermeiras falaram-me de uma noite atribulada, é preciso que alguém com o meu estatuto fale com ele, lhe interprete aquilo para o ajudar a digerir. O Sr. Matias têm problemas intestinais graves, uma série de intervenções mal feitas conseguiram, apesar de tudo, acabar com as horas intermináveis que passava na retrete, agora vai tudo para dentro de um saco descartável que ligado directamente ao baixo ventre lhe permite deambular pelos corredores. Agora tudo é mais fácil. 

     O Sr. Matias estava sentado junto à janela, pálido, visivelmente abalado. Parece que tinha tido um mau sonho, as enfermeiras, como é hábito, deram-lhe de que comer, remédio santo para a maioria destes casos, é preciso que o sonhador engula literalmente o real para se ver livre da assombração nocturna. Sentei-me junto a ele sem nunca o fixar, pedi que me contasse esse sonho. 

     O Sr. Matias era o sujeito mais calmo que conheci, mas não nessa manhã, quando começou não lhe reconheci a voz, não era a dele, falava depressa como se não houvesse tempo, num tom baixo como se, de facto, houvesse problema em sermos ouvidos. Era uma voz de alguém muito mais velho do que ele, muito mais velho, certamente, do que ele alguma vez seria. 

     -”Tenho medo... cheguei, já é noite... tudo é luz, tudo está iluminado, todos estavam aqui à minha espera... sempre a correr, encadeado com as luzes, luzes de todas as cores, vou procurando dentro das montras, toda a gente sabe, toda a gente me conhece, toda a gente me fala... avanço... o medo avança comigo, procuro... entro por casas a dentro, é um país estrangeiro, saio, ninguém me conhece, ninguém nota, todos agem como se não percebessem esta angústia. Procuro numa angústia perpétua. É ali, deve ser ali! mas não, passo em corrida por baixo da ponte de mármore e entro. Os rostos são familiares, todos ali... ali onde eu procuro, mas não são eles que procuro, tudo nesta casa é apertado, derrubo cadeiras e mesas à medida que corro desenfreadamente, mas ninguém nota. Tudo está calmo excepto a televisão que grita. Não percebo, tento gritar, não consigo. 

     Finalmente um som, é essa a voz que me é familiar, é esse o corpo imaculado que adivinhava, quase sinto o seu perfume, mas está lá fora. Chamo, grito que não se vá embora, oiço ainda um murmúrio do outro lado, está a falar comigo! não percebo bem o que diz... todo o meu corpo enfraquece num arrepio, atiro-me contra a parede, quero derruba-la, atiro-me até fazer sangue, atiro-lhe aquilo que me aparece à mão! paro um momento para ouvir, já não oiço nada, recomeço, com mais força, com mais querer, era ali! era ali que estava! chamo, caio, já não tenho força para me levantar, choro, choro em longos soluços, cada inspiração é sôfrega como se acabasse de sair de um mergulho profundo, tento ainda empurrar a parede, alguém que me conhece pergunta se quero pão, grito mais uma vez, olho para mim, não reconheço esta mancha de suor e sangue que é minha. Raspo a parede com o que me resta das unhas. Alguém que me conhece diz-me que o meu saldo acabou, que tenho que esperar o novo carregamento. Começo a acordar, não quero! eu estava ali tão perto! eu ouvi! ouvi mesmo! não havia engano, estava ali e eu não conseguia! Alguém me fala de um Pedro que não sem quem é que chegaria essa noite. Calo-me, já não sinto a parede, o meu peito aperta-se numa angústia que nunca senti, quero vomitar... não vomito. Vencido sento-me no chão e deixo-me acordar. 

     Nem um som, são quatro da manhã deste ano de graça.” 

     Ri-me com vontade e volvi: 

     -“Sr. Matias Sr. Matias... mas então o que é isso? toda a gente aqui a cuidar de si e o senhor com esses pensamentos? Vamos lá Sr. Matias! Arrebite, daqui a nada chega a família para o ver e o senhor nesse estado! Já viu as rosas novas do nosso jardim? Este ano o prémio é nosso! Sr. Matias então!? Vá, vamos lá ver esse saco, vamos lá mudar isso...” 

     Foi só isto, profissional que sou, pelo sim pelo não anoto.