segunda-feira, 5 de setembro de 2011

XXXVI



     E se todo o café de repente soube-se ao mesmo? Se uma manhã eu me levantasse ainda cedo e dos telhados a perder de vista saíssem ainda colunas lentas de vapor, se consegui-se ainda ao debruçar-me na manhã gelada tocar pedaços do gelo da noite? Le froid devant moi... en face, je descend les escaliers. J'ouvre la porte, je l'entend fermer derrière moi. Personne ne ma vu. Juste un peu de pluie sur ma tète. Au ciel. 

     Não há um que mantenha os cinco dedos, o jogo de cada um pousado na mesa, virado para baixo, não há necessidade de olhar. As cartas são jogadas a duas mãos como na China. “Sentes o cheiro rapaz? O cheiro da merda, do sangue, do suor?” O cálice ergue-se com o que resta do mindinho e o polegar. “Não consegues controlar, a mão fecha, forte como se electrificada, dez segundos e acabou... no ar um cheiro a pólvora... merda! Isto ficou mal baralhado!... Sentes o cheiro rapaz? Este lugar é imundo. Merda, cheira a merda... És tu a dar” Um grande anel à antiga ainda brilha no anelar esquerdo. A cara é normal, o olhar despreocupado, o jogo recomeça sempre. 

     E se todo o café de repente soube-se ao mesmo? Se prédios inteiros ainda tremessem ao som dos meus passos e comboios me saíssem das mãos como de uma gare? Entretanto um cigarro.

domingo, 21 de agosto de 2011

XXXV

Quando se come engole-se

Quando se deita dorme-se

Quando se queixa come-se

Quando se quer fode-se.




Entrou a esvoaçar pela janela aberta e posou, como uma pena na brisa, em cima da mesa da casa de jantar.

Retirou as asas não sem dificuldade, primeiro apertando-as ainda mais, soltando um lado e não o outro, esfregando-se contra as paredes e por fim fazendo-as escorregar até aos pés. Pendurou-as junto à porta e sentou-se exactamente abaixo, no chão.

Acendeu uma pequena beata que guardava no bolso para dias como este. Deixou-a arder lentamente entre o dedo mindinho e o vizinho.




Lá fora o dia terminava, tornava-se cinzento, nebuloso, frio.




Olhou para cima e com a beata incendiou uma primeira pena, que passando a chama às seguintes, e essas às outras até que as asas formaram uma chama imensa, redonda, imediatamente por cima da cabeça. Pedaços negros, carbonizados, ainda a fumegar caiam-lhe lentamente sobre os ombros, até que tudo acabou.

Lentamente dirigiu-se à janela, retirou o vaso de cima do parapeito e sentou-se, recebendo a brisa do fim da tarde, enquanto o dia terminava, o céu, primeiro cinzento, nebuloso. Depois negro, estrelado ainda, a noite.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

XXXIV



Esquece tudo o que aprendeste no exército. 

Aqui, não há lugar para isso, aqui tudo está perdido. Atacamos ao meio dia e meia hora, ao toque da corneta do almoço. Evitamos assim o peso dos talheres na corrida. 

Deve acontecer depressa, embora calmamente. Ainda é cedo, o importante é esquecer tudo o que aprendeste no exército, esta acção deve ser levada a cabo com o máximo pormenor. Larga a espingarda, acontecerá depressa, mas não tão depressa. Luvas grossas, açaime, fato macaco e mais nada. 

Quando soar a corneta corres e atacas, olhos bem cerrados, acima de tudo olhos bem cerrados. Deves falar sempre, a toda a hora, sem parar, sem deixar espaço. Até ao fim. 

Não esperes que te ajude, que te dê a mão, que não volte para aqui e te veja correr desenfreadamente. Não pronuncies o meu nome, não digas que alguma vez me viste, ou que falaste comigo. 

Corres sempre, olhos sempre fechados, sempre a falar, sempre sem parar. A dada altura o peito tornar-se-á mais pequeno, sentirás dificuldade em respirar, em recuperar o fôlego, em correr. É esse o sinal de que te aproximas. A terra, os montes, a erva... todo se aproxima e te consome, e tu nunca pararás de falar, nunca abrirás os olhos sob pena de explodires. Aí tudo estará perdido. Encore 




Quando o ataque terminar terás vencido ou perdido. Feitas as contas tanto faz, não tenhas medo. Ao abrir os olhos não tenhas medo, agora que a hora de almoço se aproxima. E o Sol bem alto aquecendo a terra. Será rápido, um instante, só uma vez.

domingo, 7 de agosto de 2011

XXXIII



     Vencido, está sentado contra o muro com a coluna partida em três partes. Uma ninharia, convinhamos, comparada com o número de partes em que uma coluna pode ser partida. Nenhuma das três a correcta. Contra o muro ainda respira, ainda é capaz de se reproduzir. 

     Outros virão, virão e tirarão partido do seu corpo imóvel, partido. Regalar-se-ão com a sua carne e o seu sangue até que nenhum sinal reste. 

     Respirará ainda, reproduzir-se-á ainda. Amanhã conseguiremos ainda ouvir os seus passos, o seu rastejo. Amanhã procuraremos por ele, ainda. De tempos a tempos iremos vê-lo ainda ao longe de fugida, desviaremos o nosso caminho na sua direcção, apenas porque caminhamos ainda. 

     Num dia, numa noite, qualquer que seja, ao acaso, sem que nada o faça prever, seremos capazes de o escutar respirar, ainda, mesmo ali ao pé. Acenderemos todas as luzes, gritaremos palavras de ordem, de ódio, e depois de perdão. Balbuciaremos ainda o seu nome ao adormecer. 

     O lagarto, vencido e espezinhado, deixará de respirar um dia. 

     Ainda In Memoriam... do lagarto.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

XXXII



     Pela manhã, por vezes, às primeiras horas de luz... devagar. Como é levantar-se pela manhã? Caminhar a passo acelerado do início ao fim da rua, atravessando as primeiras horas de luz até ao seu fim. 

     Que peso aí? Que peso pesa aí? Nessas primeiras horas, do início ao fim, enquanto tudo ganha espessura, endurece e oprime. Febre? E quem mente quando mente dirá bem, exprimirá certo. Peso, aí. Rua dentro e depois fora. 

     Alguém que aparece ao longe. Porque cada manhã, cada primeira hora de luz revela, não... perde nesses primeiros raios toda a espessura, abala toda a firmeza. 

     Então que peso pesa aí? Nessa primeira luz que torna a gravidade um mito. Caminhar aceleradamente pela calçada, de olhos postos no chão prevendo. A primeira luz da manhã ainda sem sol. Que peso aí, caminhando apressadamente sobre a calçada? 

     Pára. Como nunca tinha feito, nem tornará a fazer. Pesa agora numa pedra meio solta, meio a abanar. 

     A pedra, essa, foi talhada por um saber esquecido, manteve-se firme - mais nada. Agora, às primeiras horas, vacila sobre o peso que caminha acelerado pela rua. 

     Estica os dedos, o braço (esquerdo), encolhe o corpo e colhe o pedaço trémulo de chão. À primeira luz da manhã os lados e a base da pedra tinham ainda as marcas do cinzel que a trabalhou, Que a trabalhou perfeitamente para o lugar de onde ainda há pouco, à primeira luz, se soltava. 

     Que pesa aí? Nessas primeiras horas de claridade, de brancura que tudo engole. 

     Com a ponta da língua sentiu-lhe o sabor, as ranhuras do cinzel. Olhou a terra que ficara para trás, inimaginavelmente ainda lá, ainda depois de tanto tempo. Deitou-a fora, o mais longe possível. 

     Porque cada manhã, cada primeira hora de luz, perde, dissolve. Então que peso pesa aí? Rua fora, caminhando apressadamente de olhos colados ao chão.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

XXXI

Doutor, ainda bem que o vejo

por aqui.

Veja a menina, linda

Oh Doutor que não descansa

Veja a mãe que já me cansa

O cão cheio de pulgas

O vinho Doutor! Que já não vem das uvas.

Anda filha!

Anda ao senhor,

ao Doutor.

Mostra o corpinho,

o bracinho...

Anda cá depressa!

Veja doutor como tropeça...

Mostra querida,

Ai Senhor que me abres uma ferida!

Repare que não foi pulga que mordeu,

antes uma melga que certamente se perdeu...

Ande doutor, veja lá que até hoje só dorme de perna traçada.

Melhor do que isto só dada...

segunda-feira, 2 de maio de 2011

XXX



     Cima, sempre para cima, pela escada em caracol direitos ao cimo da torre. Um degrau de cada vez, sempre para cima, sempre mais escada, sempre a virar. A escada familiar, cada degrau como o anterior, ninguém diria que de facto sobe, no entanto sempre a subir, sempre para cima. Para baixo nada a não ser a curva, para cima nada a não ser a curva, no entanto sempre a subir, sempre para cima, sempre a virar para o cimo da torre, quase a chegar. 

     Por vezes uma janela, uma seteira como se diz, encostamos a cara à pedra para ver melhor, lá fora. Uma árvore ao longe, uma macieira. É Verão, os olhos percorrem a erva seca, amarelada, até à sombra da árvore. Um pardal, salta, muda de ramo, salta novamente, sacode-se e voa para o chão, para a sombra da macieira. Silêncio. Uma corrente de ar quente entra pela janela, pela seteira como se diz, até à cara e para dentro da camisa até ao peito. A cara encostada à pedra fria para ver melhor, lá fora. Uma árvore ao longe, uma macieira. 

     Cima, sempre para cima, pela escada em caracol direitos ao cimo da torre. Estreita, apenas espaço para um de cada vez, sempre para cima, sempre mais escada, sempre a virar. A escada familiar, cada degrau como o anterior, pequenas falhas na pedra, pequenos veios, pequenos buracos, riscos, nomes gravados a unha, os degraus arredondados pelo tempo, ninguém diria que de facto sobe, no entanto sempre a subir, sempre para cima. Para baixo nada a não ser a curva, para cima nada a não ser a curva, no entanto sempre a subir, sempre para cima, sempre a virar até ao cimo da torre, no entanto sempre quase lá.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

XXIX

     Ele está prestes a ser fuzilado. Atado a um poste de madeira no pátio do estabelecimento correcional espera pela sua bala. Nem um som, excepto o da carabina a carregar, nada de não familiar, ouviu este som centenas senão milhares, de vezes ao longo da sua vida, o som da carabina a carregar. Do meio do pátio do estabelecimento correcional olha para cima, o céu pesado anuncia chuva. Lá fora por certo alguém recolhe apressadamente a roupa do estendal. Uma contínua brisa gelada arrepia-lhe a pele que se contrai como quando em pequeno esperava em calções pelas aulas de ginástica. Nem um som, excepto o da carabina a carregar. Nas costas um ligeiro desconforto por causa de uma farpa saída do poste. Nada a assinalar, apenas um ligeiro gosto a ferro como se tivesse vindo a correr. Nem um som, excepto o da carabina a carregar, nada que diga que vai acabar.

terça-feira, 19 de abril de 2011

XXVIII



     Para mais, para uma medida sempre maior, cortadas as vazas não há limites, o jogo avança perdido carta a carta sobre a mesa verde. Essa será a verdadeira beleza, inevitavelmente perdido, o jogo, sem que por isso se abandone a mesa, sem que por isso cada carta seja tirada com menos furor, até que por fim as luzes se apaguem, todos os apostadores abandonem sala e nós mesmo assim, no escuro, vasculhando as cartas deitadas procurando por mais. 

     Apenas porque cada paisagem se embrulha numa torrente imparável de cor, cada folha confundindo-se ao longe, com aquela perdida há já tanto tempo. E as trepadeiras incansáveis sempre a subir pelas fachadas cada vez mais velhas sem que por isso o sol se cubra de vergonha. 

     Mais um jogo! Mais um jogo! Mais um jogo!

domingo, 17 de abril de 2011

XXVII

     É possível que não estejamos a ver bem, que o próprio facto de ter, no primeiro dia, aberto os olhos para contemplar o mundo, nos tenha secado para o chorar. Em cada toque há o frio do mármore que se anuncia. Foi esse mundo que os nossos olhos viram no primeiro dia, são esses os olhos que de cada vez aumentam essa perda, abrem essa ferida procurando sempre a mesma hora, o segundo imediatamente antes à abertura. Ontem.

segunda-feira, 28 de março de 2011

XXVI

    Le lit, toujours là, pour le moment. Parfois on se couche, on se couche pas, on s'étend, une oreillette entre les genoux, ça devient plus confortable. On y est né, enfin... c'est ça qu'on nous dit. Le lit, on le fait, on le fait pas, on le refait. On pousse les draps, on les soulève, quelque fois on les déchire. Au lit on s'arrête jamais... parfois une puce! Chaque fois qu'on se couche on se lève, on se lève toujours. Pourtant on reste fidèle aux puces, au lit. Dans le lit il y a toujours quelque chose qui pousse, quelque petite saleté qui dérange, parfois une tâche, alors on change les draps, on sait pas, on dormait. Dormir... mais qu'est-ce qu'on raconte? Un jour on sera au lit pour du bon, on y sera avec toutes les saletés qu'on s'efforce maintenant de cacher, on y sera toujours avec l'oreillette au milieu des genoux et bien sur aussi la puce, toujours la puce que chaque fois nos morde en disant qu'on est encore en vie. La puce immortelle qui est au lit.

XXV

     Um breve traque na escuridão, dir-se-ia que de alguma forma o espaço se fechou numa imensidão de luz. Não é bem assim, a casa é uma velha casa, à força do hábito já não é preciso pisar o chão para que cada tábua estale. A casa está vazia, são essas tábuas, que se esforçam por soltar-se sozinhas, isto apenas por estarem assim... mesmo, a terra contra a gravidade. Nessa casa há algo que continuamente tenta emergir, não, perfurar, não... há algo que se rompe continuamente. No tecto, uma brecha que divide a casa ao meio, exactamente por cima da cabeça de quem olha (se alguém olha). Sempre lá esteve e nunca parou de aumentar. De há uns anos para cá que um líquido esverdeado escorre de dentro dessa frecha. Nos dias mais húmidos, em que esse líquido é menos espesso, solta-se e pinga-nos a cabeça, escorre pela testa, por entre os olhos até à boca como se fosse pranto, como se fosse nosso, sempre rompendo o ar e a monotonia do rosto como se fosse a primeira vez. No princípio uma pequena passagem com o lenço era bastante para que desaparecesse, agora o rosto parece tão verde quanto o tecto, mas não é o tecto, que esse rompe continuamente, ruidosamente. Dizemos que vive. O lenço é apenas um traço de um passado - como muitos - escondido dentro das calças. O líquido esverdeado, nos dias de mais húmidade escorre para a boca e alimenta. Sentamo-nos aqui na primeira fila, desde o primeiro dia, da primeira hora, à espera que finalmente a casa se rompa definitivamente, para que finalmente recomece. Recomeçar, sempre, mais uma vez, só mais uma vez, um minuto, um segundo, o tempo de o agarrar e o guardar. As tábuas que se esforçam por abandonar, que recriam a cada instante a caminhada, a casa que rompe, que se rompe, cada vez mais, sempre, no entanto, assim. Sentados, olhando para cima, esperamos que caia, de preferência silenciosamente, ruidosamente.

terça-feira, 8 de março de 2011

XXIV


Ora bem, há três posições diferentes... três posições possíveis... estamos aqui a falar de... vamos falar de... um momento. Perdão. Há aqui uma distinção que é preciso fazer. Ora atentemos à janela... a janela... sim, sim, ja-ne-la, é preciso disti... disting... merda! Deixemos a janela. Há aqui uma coisa que é preciso separar, não, são três coisas... É preciso distinguir absolutamente conhecimento e linguagem, duas coisas. Perdão. A linguagem diz respeito à língua sim? Já conhecimento não se come, não tem nada que ver com a língua, tem que ver com o estômago, é lá que principia toda a cadeia causal que levará - a menos que barrado o caminho - ao conhecimento, o conhecimento. 

A língua não pode ser distinguida, é preciso que esteja agarrada, para que quando um intelectual em apuros fique com o conhecimento entalado outro possa -comme il faut- com ela abrir-lhe o... caminho. 

É assim não é? Não? Talvez... hesito....

sábado, 5 de fevereiro de 2011

XXIII

     Então você acha que ia dar ali o hall para os homens dormirem? Não, rua com esses sujos todos! Esses que nem por isso desaparecem e antes se demoram do lado de fora da porta, gemendo por um grão de arroz! 

     Às vezes diria que cantam delirantes. Ajoelhados. Imploram para a esquerda e para a direita que lhes matem o bicho. Raspam-se pelas paredes e mordem-se até fazer sangue. O bicho maior do que eles. 

     Alguém pede lume. Com voz de criança damos e respondemos obrigado: O prazer de incendiar. 

     Cada vez mais longe... mais depressa... só pelo prazer da longitude que abandona o Norte. 

     A voz da dispersão: só uma! mas a minha! 

     Agora. Misteriosamente. Veloz. Já ninguém sabe que também a ele lhe assenta a carapuça. 

     Porque há mais alto, ali, a ilusão inalcansável. É já ali: O lugar dos famintos. 

     E o silêncio impressionante da vida, que assiste: a isto, e àquilo.

     “mas isso come-se?”

     Medo. 

     Será que apenas eu odeio os gráficos das estatísticas? Não porque são estatísticas, mas porque são demasiadamente gráficos. 

     A merda do homem a quem uma vida não lhe chegou para a aprender a conduzir, e a voz, eternamente à pendura, que lhe diz que vai bater. Rua! Rua! Rua!

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

XXII

L'Image... presque... je la vois presque. L'Image. Je m'approche doucement à cause de la dissolution. L'Image, elle appelle. L'Image ordonne le mouvement vers... le mouvement vers l'Image? Je ferme mes yeux, je deviens aveugle. L'Image est néa... néan... néanmoins la, encore la... encore intacte... l'Image. Je m'approche doucement à cause de la dissolution. Je la sent... je commence par le haut et je la sent tout en descendant. L'Image n'a pas de but et moi... moi, je ne reconnais pas l'odeur, et néa... néan... néanmoins la, encore. Avec ma main gauche je couvre mon nez, et je frappe l'Image. Je le fais doucement, à cause de la dissolution, je caresse cette infinitude et je ne la reconnais pas au tact. Tout entière l'Image est... au but de compte... compte? L'Image... au but? L'image est néa... néan... néanmoins la. Encore qui m'appelle... qui me tire... je baisse ma main... encore... je branle, l'Image qui branle aussi avec moi... je la contourne en l'accolant... en la pressant fort vers moi et je l'avale tout entière. J'explose. L'Image encore... la, voilà néa... néan... néanmoins la. Encore qui appellera.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

XXI



     Cheguei ao quarto do Sr. Matias. As enfermeiras falaram-me de uma noite atribulada, é preciso que alguém com o meu estatuto fale com ele, lhe interprete aquilo para o ajudar a digerir. O Sr. Matias têm problemas intestinais graves, uma série de intervenções mal feitas conseguiram, apesar de tudo, acabar com as horas intermináveis que passava na retrete, agora vai tudo para dentro de um saco descartável que ligado directamente ao baixo ventre lhe permite deambular pelos corredores. Agora tudo é mais fácil. 

     O Sr. Matias estava sentado junto à janela, pálido, visivelmente abalado. Parece que tinha tido um mau sonho, as enfermeiras, como é hábito, deram-lhe de que comer, remédio santo para a maioria destes casos, é preciso que o sonhador engula literalmente o real para se ver livre da assombração nocturna. Sentei-me junto a ele sem nunca o fixar, pedi que me contasse esse sonho. 

     O Sr. Matias era o sujeito mais calmo que conheci, mas não nessa manhã, quando começou não lhe reconheci a voz, não era a dele, falava depressa como se não houvesse tempo, num tom baixo como se, de facto, houvesse problema em sermos ouvidos. Era uma voz de alguém muito mais velho do que ele, muito mais velho, certamente, do que ele alguma vez seria. 

     -”Tenho medo... cheguei, já é noite... tudo é luz, tudo está iluminado, todos estavam aqui à minha espera... sempre a correr, encadeado com as luzes, luzes de todas as cores, vou procurando dentro das montras, toda a gente sabe, toda a gente me conhece, toda a gente me fala... avanço... o medo avança comigo, procuro... entro por casas a dentro, é um país estrangeiro, saio, ninguém me conhece, ninguém nota, todos agem como se não percebessem esta angústia. Procuro numa angústia perpétua. É ali, deve ser ali! mas não, passo em corrida por baixo da ponte de mármore e entro. Os rostos são familiares, todos ali... ali onde eu procuro, mas não são eles que procuro, tudo nesta casa é apertado, derrubo cadeiras e mesas à medida que corro desenfreadamente, mas ninguém nota. Tudo está calmo excepto a televisão que grita. Não percebo, tento gritar, não consigo. 

     Finalmente um som, é essa a voz que me é familiar, é esse o corpo imaculado que adivinhava, quase sinto o seu perfume, mas está lá fora. Chamo, grito que não se vá embora, oiço ainda um murmúrio do outro lado, está a falar comigo! não percebo bem o que diz... todo o meu corpo enfraquece num arrepio, atiro-me contra a parede, quero derruba-la, atiro-me até fazer sangue, atiro-lhe aquilo que me aparece à mão! paro um momento para ouvir, já não oiço nada, recomeço, com mais força, com mais querer, era ali! era ali que estava! chamo, caio, já não tenho força para me levantar, choro, choro em longos soluços, cada inspiração é sôfrega como se acabasse de sair de um mergulho profundo, tento ainda empurrar a parede, alguém que me conhece pergunta se quero pão, grito mais uma vez, olho para mim, não reconheço esta mancha de suor e sangue que é minha. Raspo a parede com o que me resta das unhas. Alguém que me conhece diz-me que o meu saldo acabou, que tenho que esperar o novo carregamento. Começo a acordar, não quero! eu estava ali tão perto! eu ouvi! ouvi mesmo! não havia engano, estava ali e eu não conseguia! Alguém me fala de um Pedro que não sem quem é que chegaria essa noite. Calo-me, já não sinto a parede, o meu peito aperta-se numa angústia que nunca senti, quero vomitar... não vomito. Vencido sento-me no chão e deixo-me acordar. 

     Nem um som, são quatro da manhã deste ano de graça.” 

     Ri-me com vontade e volvi: 

     -“Sr. Matias Sr. Matias... mas então o que é isso? toda a gente aqui a cuidar de si e o senhor com esses pensamentos? Vamos lá Sr. Matias! Arrebite, daqui a nada chega a família para o ver e o senhor nesse estado! Já viu as rosas novas do nosso jardim? Este ano o prémio é nosso! Sr. Matias então!? Vá, vamos lá ver esse saco, vamos lá mudar isso...” 

     Foi só isto, profissional que sou, pelo sim pelo não anoto.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

XX



     Certa manhã, apresentou-se diante do espelho. Ia sair. O dia começava frio, tomar banho ou fazer a barba revelaram-se então um trabalho demasiadamente penoso e, dada a fragilidade da sua figura, poderia mesmo vir a tornar-se algo letal. Nunca se sabe, e uma peumo... pneuli...peumolin... uma doença é sempre algo de desgastante, o corpo ressente e grita miseravelmente o cobarde ataque. 

     Diante do espelho havia pouco que ver, o cabelo, antes desleixado e cheio de remoinhos, revelava-se agora (por não ver água) em todo o seu esplendor, ligeiramente abrilhantado; fácil de pentear libertava ainda um odor adocicado. Estava bonito. Saiu. 

     Quando chegou a rua já lá estava, gente taralhoca andava para trás e para diante num redemoinho impensável para ele habituado a ver de cima. Quem vê de cima não vê bem, não pode ver bem, vê de cima, isso, se isso não explicar tudo, explica alguma coisa e se não explicar alguma coisa continua tudo como estava o que não faz mais mal nenhum. 

     Não sabia bem por onde andar, ao fim de três ou quatro encontrões com as primeiras velhas que lhe apareceram, muito cansadas, não se sabe bem de onde, olhou para trás. A porteira começara a lavar a escada, seguiu em frente cambaleante junto aos prédios. Em pânico mas em frente. Entrou num pequeno café, a televisão insistia em gritar qualquer coisa, qualquer aniversário... one small step for man... os poucos que lá estavam falavam desse dia, que aparentemente parecia ser o dia em que estavam, só que na altura estavam na cama. Saiu. 

     Adiante, na esquina onde terminava a sua rua cruzou-se com umas pernas brancas e enérgicas que o fizeram sentir-se... sentir-se? Sim, sentiu-se e seguiu-as a passos largos rua fora... afinal... 

     Seguiu aqueles tornozelos, deliciou-se com a forma como naturalmente se esgueiravam por entre a multidão; seguiu-os até os ver desaparecer num pulo juvenil para dentro de um autocarro, aí parou. Com a mão direita retirou os cabelos que lhe tinham caído para a testa de tanto olhar para baixo, não podia continuar, queria, não podia. Por alguma razão obscuramente presente, ou por razão nenhuma não conseguiu dar nem mais um passo. Estava paralisado. 

     A multidão que saía de dentro dos autocarros arrastou-o rua a baixo aos empurrões, os mais afoitos percebendo a sua fraqueza agarravam-lhe nas mãos e davam-lhe grandes bacalhaus, e ele deixava-se ir à deriva no meio daquela mortalha de gente que lhe gritava, a ele! e lhe puxava os cabelos sempre a sorrir, sempre a sorrir. 

     Já era quase mesmo a bem dizer... dia! quando fechou os olhos, num último arrepio de força começou a libertar-se, e subiu por cima de toda a gente, de todas as vozes, das palavras, dos gritos, dos ecos, dos choros das crianças cheias de ranho, das bengalas, das fraldas, das televisões, subiu num salto por cima disso tudo e lá em cima era silêncio. Viu ao longe o autocarro afastar-se levando as branquíssimas pernas para longe. Olhou-se, viu o seu corpo ainda meio destrambelhado e ensanguentado, mas já não ouvia a gente, tudo era calma. Mas nada estava calmo, subitamente um som, a princípio fraco e depois mais nítido, preencheu todo o seu corpo, tapou os ouvidos, mas isso ainda aumentou aquele ruído estranho. Todo ele estremeceu, todo o seu corpo se enrijeceu de terror. O autocarro dobrou a esquina e desapareceu... ele dobrou-se sobre si mesmo como um cão e deitou-se pálido; era o som do seu coração que batia, do sangue que lhe corria nas veias, logo a ele. Afinal não...

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

XIX

     Aurora mal... Aurora maldi... Aurora. Em que cada traço uma vez trazido à vista pede para ser dito. Aqui à nossa frente, aqui para que toda a gente veja. Aurora aqui mostrando ligeiramente os tornozelos. Aurora, agora que tudo parecia já feito e embalado, pronto... outra vez.

     Ergue-te, responde ao dia. Diz... diz? O quê? Diz. 

     E toda essa imensidão um pedido. Uma resposta, mais uma a esse dia, como se fosse dia e a resposta não se perdesse no eco nocturno. 

     Toca... não!... assim... sim sim sim sim im im... 

     Porque a pele já não é a nossa pele e tudo é pequeno, mirrado escama à mínima pressão. Sem sangue, sem dor. Irreconhecível. Porque agora tudo é plástico e estica, é pele como se a fosse. 

     Novo dia, na Aurora balbucias qualquer coisa como se fosse... história, como se fosse finalmente isso, como se fosse para o final. Fin 

     Nesta terra já ninguém se lembra como tudo é aceite, como tudo verdadeiramente se aposta; joga como se fosse a sério.